Porto Velho, 6 de março de 2012.
Dra. Dilma Rousseff
MD Presidente da República do Brasil
Palácio do PlanaltoBrasilía (DF)
Na condição de cidadãos brasileiros, através da Associação de Preservação do Patrimônio Histórico do Estado de Rondônia e Amigos da Madeira Mamoré (AMMA), CNPJ n° 104.305.125-0001-80 (Brasil), e Madeira Mamoré Railway Society (Inglaterra) levamos ao conhecimento de Vossa Excelência os crimes permitidos por instituições contra o patrimônio cultural brasileiro e o meio ambiente na região das 20 cachoeiras e corredeiras do Rio Madeira, entre Porto Velho e Guajará Mirim, no Estado de Rondônia.
A degradação causada até então exige providências de segurança nacional, pois ocorre num território amazônico onde há cem anos foi construída a histórica e legendária Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM). A senhora sabe, Senhora Presidente, que em 1972 essa ferrovia foi cassada pela ditadura militar. O povo brasileiro e a comunidade internacional exigiram, em vão, sua reativação ainda naquele período truculento. Sobre o patrimônio dilapidado e enferrujado que restou dessa ferrovia cujo sentido para nós rondonienses evoca a presença de uma mãe, ergueram-se as barragens de Jirau e de Santo Antônio. Em linha reta elas terão 400 quilômetros de extensão, ignorando-se ainda a largura dessa represa, embora já sejam muito conhecidos os efeitos de suas alagações.
A extensão do fenômeno de estrangulamento do Rio Madeira se estende por aqui, no vizinho Estado do Acre e na vizinha Bolívia. As consequências são drásticas, pois os afluentes e sub-afluentes de rios no Brasil, na Bolívia e no Peru sentem esse estrangulamento do Rio Madeira. As enchentes no caudaloso rio atualmente inviabilizam a região. Ao construírem as represas em Santo Antônio e Jirau para a geração da energia que servirá ao Centro-Sul do País, surpreenderam-se, porque o indomado rio não foi contido. Era tudo engano, ilusão, querer domar a Natureza num de seus maiores quintais do mundo, a Amazônia Brasileira.Senhora Presidente: os derradeiros atentados contra a EFMM são absurdos, escandalosos, estarrecedores. Eles não condizem com um País que dependeu da luta popular, do grito de cada um de nós, para se tornar novamente democrático. Necessário e inadiável informá-la que a anistia da EFMM foi conseguida a duras penas, graças à exigência popular brasileira e internacional, quando a ferrovia passou a ser reativada no início dos anos de 1980, ainda sob o acão ditatorial.
Hoje nossos olhos enchem de lágrimas ao vermos a destruição de um rio e o pisoteamento da Madeira Mamoré, sem um retorno convincente, sem qualquer possibilidade de viabilidade econômica e de desenvolvimento para nossa região.The End, diriam os romancistas. É o fim, dizemos nós todos.A exemplo de um filme cujos ingredientes soam medonhos, aqui tramam ações políticas nefastas apenas para se perpetuarem no poder. Agem num misto de terror, de política malfeita, de ideologia barata regada a corrupção, mentiras, plágio de idéias, omissão, inércia, impunidade, bandidagem, criminalidade, trapaça, violência, o que resulta enfim na destruição premeditada.
Desaparece definitivamente a lendária Estrada de Ferro Madeira Mamoré, e da mesma forma, desaparece também uma região estratégica que ajuda trazer o equilíbrio para o clima do planeta terra. No lugar da ferrovia estão encravadas 20 cachoeiras e corredeiras, rios, igarapés, florestas, várzeas, enfim, um ecosistema fantástico. Mais: ali está um povo fantástico, a mescla do caboclo e do indígena gente pura. Eram e viviam felizes, hoje são expulsos. Desconheciam eles as ações políticas maquiavélicas, arquitetadas com o objetivo de aniquilar-lhes as vidas de paz que levavam. Nessa região entre Porto Velho e Guajará Mirim, a natureza permite se encontrar e quem sabe, se confrontar o Planalto Central Brasileiro com a monumental Amazônia, um paraíso abstrato da natureza, muro de contenção que suaviza o impacto onde ocorre a união desses dois notáveis ambientes diferenciados de ecossistemas. Não há dúvida: esses políticos ofereceram aos ribeirinhos, indígenas e caboclos a ideia que o vultoso empreendimento hidrelétrico proporcionaria o progresso para a região. "Usinas já" – quantas vezes ouvimos essa palavra de ordem. Foi essa a propaganda vendida por ex- honoráveis representantes – não sei se bandidos –, entorpecendo a cada semana a sofrida população de Rondônia. E mesmo o povo mantendo-se indiferente ou frontalmente contra, o plano de construção das barragens, elas vieram sob forte maquiagem e orquestração para a suposta legalidade de uma situação inaceitável, parte integrante do ilusório a que chegamos.
Inicialmente, fabricaram audiências públicas. Rondônia passou a ser veiculada ferozmente na mídia e até esquecemos que temos camponeses massacrados, mortes a serem investigadas, massacres indígenas e outros crimes impunes. Esquecemo-nos até – pasme Senhora Presidente! que um dia passou por aqui um homem chamado Cândido Mariano Rondon, legítimo defensor das nações indígenas e pioneiro das comunicações, mas um pioneiro que não precisou derrubar aroeira, castanheira, nem peroba ou samaúma!"Venderam-nos" um Eldorado de prosperidade no Oeste Brasileiro. Contudo, como é do Vosso conhecimento, qual a imagem desse pobre Estado fora de seus limites? A de um mar de lama originado da desenfreada corrupção repetida há vários governos.
O desaparecimento
É com tristeza que, a cada dia se flagram mentes satânicas que se passam por humanas, porém, desprovidas das mãos do Pai criador, o Grande Arquiteto do Universo, promovendo o desaparecimento da mais famosa ferrovia do mundo, construída pelo Tratado de Petrópolis e tombada em 2005 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Concluída sua construção da ferrovia, em 1912, depois de cinco anos, trabalhadores de mais 50 nacionalidades ergueram uma obra verdadeira na Amazônia Ocidental, numa das mais inóspitas regiões do planeta. E nela morreram milhares de homens, numa batalha de luta, suor, sangue e mortes e vida. Sim, a EFMM foi tombada no sentido histórico e cultural, mas vitimada por uma política de terra arrasada que não poupou o próprio Cemitério da Candelária, de túmulos multinacionais, totalmente destruído e desrespeitado, cedendo espaço à sanha cruel dos que ali ergueram casasA EFMM foi também tombada em toda a sua extensão, em 1988, atendendo à Constituição do Estado de Rondônia. É de 1980 a origem de uma longa luta da população de Rondônia por sua reativação. Luta de ferroviários, professores, historiadores, engenheiros, arquitetos, Fundação Pró-memória, Iphan, Instituto de Arquitetos do Brasil e seus COSUs, CREAs etc. Houve um esforço incomum para salvá-la do horror dessa destruição que se acentua a cada ano. Aos políticos de Rondônia coube o amaldiçoado papel de pegar carona na luta popular.
Lutamos bravamente, longos anos, pelo resgate; lutamos para reativá-la e restaurá-la. Participamos de diversas reuniões, manifestos e protestos. Tudo pelo tombamento! E nos chamavam de subversivos, entregando nossos nomes aos arapongas da ditadura militar. Esperávamos que a ferrovia estivesse salva com os seus tombamentos. Mas não foi isso o que vimos, Senhora Presidente: prevaleceu a permissividade. Fomos ludibriados.Massacre moral
Com relação a esse patrimônio cultural que é a Madeira Mamoré, passou a campear o terrível abuso de autoridade e a inércia. A partir do inicio da década de 2000 houve enorme influência político-partidária na questão: instituições culturais e ambientais, entre as quais o Iphan, o Ibama, o próprio Ministério Público Federal e Ministério Público de Rondônia e a Advocacia Geral da União, o serviço de Patrimônio da União (SPU)e até uma parcela do poder Judiciário se deram as mãos nesse processo tenebroso de destruição; no sentido de viabilizar a destruição ambiental e ao patrimônio cultural brasileiro . Obviamente, tiveram alguns momentos de lucidez, mas isso não impediu que prosperasse o desmonte da coisa pública e pátria.Ao encarnar a luta intransigente da defesa do patrimônio cultural tombado e do meio ambiente em Rondônia, a AMMA viu seus membros perseguidos, humilhados, como se fossem estranhos numa luta que sempre foi nossa, com legitimidade. Em julho de 2006 a nossa entidade foi expulsa do interior do pátio ferroviário, já que, aos olhos daqueles agentes mais desclassificados que os espiões do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), éramos considerados estorvos. Nossos quadros abrigavam pessoas capazes de pôr o trem para funcionar, mas não nos quiseram, porque passamos a ser inimigos de um status quo totalmente avesso ao que pregavam aqueles que propugnavam a democracia numa terra quase de ninguém.
E assim, para o grupo político-partidário dominante e toda a sua camarilha e seus asseclas empoleirados no poder, nada mais poderíamos fazer para exercer o direito de postular a Madeira-Mamoré como ela um dia havia sido. Gritaram contra alguns membros da AMMA, como se eles fossem contrários "ao progresso e ao desenvolvimento". Eles tiveram que deixar Rondônia em situações tão piores quanto as que presenciamos durante o regime arbitrário da ditadura que Vossa Excelência vivenciou bem próxima.Tornou-se desesperador o partidarismo político abusivo dentro das instituições de preservação do patrimônio. Logo ali, onde leis e portarias de preservação, protetoras do Patrimônio Histórico deveriam ser obedecidas. No entanto, as desfiguraram totalmente sob o beneplácito de administrações estadual e municipal surdas, cegas e não mudas, porque falavam, mesmo o que não deviam ou tinham competência para fazê-lo.
Para esses senhores, a AMMA teria que ser destruída na sua luta inglória e enterrada junto com vagões, locomotivas, trilhos e dormentes. Em momento algum nós nos intimidamos, mesmo sabendo que a causa estava perdida! Denunciamos procuradores, promotores, superintendentes, gerentes, até membros do Poder Judiciário. Para nada, porque o maquiavelismo ensinou muito bem os detentores do corporativismo. As denúncias nossas contra a destruição da EFMM e o Rio Madeira, maquiadas pomposamente de "revitalização", foram ridicularizadas. Houve pareceres de gaveta, casuísticos, autorizando a inércia, o descumprimento diuturno das leis, num verdadeiro vandalismo oficial. Assim permitiu-se a destruição da maior referência histórica ferroviária do Brasil e mundialmente conhecida, numa nebulosa situação que faz prevalecer a impunidade relativa aos crimes praticados contra meio ambiente e o patrimônio ferroviário tombado.
Entalado, o Madeira não foi contido
A palafita, o barranco e a EFMM...rios, igarapés, várzeas, florestas, desaparecem destruídos pelo rio em fúria. Alí, na região da Madeira- Mamoré, está um povo fantástico, “a mescla do caboclo, do indígena: gente pura. Eram felizes. São expulsos. Desconheciam ações políticas, maquiavélicas com o objetivo de aniquilar-lhes as vidas...De paz que lavavam.” Foto: Dario Braga/2012. Enfim, as usinas entalaram o rio, usando-se uma conhecida expressão de caboclos e beiradeiros. Fomos entalados pelas comportas das hidrelétricas e do lago muito acima da cota do terreno. É por isso que tudo está submerso. Tais represas, repito, colocam perigosamente debaixo das volumosas águas barrentas: florestas, estradas, cidades, palafitas, trilhos e pontes metálicas, além da expulsão de milhares de pessoas.
Correnteza e banzeiro promovidos por mudança de um rio em formação acarretam surpresas aos próprios engenheiros das barragens. O Madeira não foi mesmo contido. O gigante simplesmente reage nessa louca comprovação da lei da física mostrada pela natureza. Onde existiam as 20 cachoeiras, a força d'água, também chamada de banzeiro dissolve os barrancos como farinha dágua e escava a terra. Na verdade, emburaca, destruindo bairros na cidade de Porto Velho, Nazaré, Calama, São Carlos e outras pequenas vilas situadas rio abaixo. Possivelmente, leve também problemas à cidade fronteiriça de Guajará Mirim, ao Acre e à Bolívia. Basta observar o que já ocorreu com as cheias dos rios Jacy, Mutum, Acre e Purus. Tudo alaga. Hoje represadas, as cachoeiras do Rio Madeiras não foram contidas, danificando pequenos rios, aqueles organizam e formam as cabeceiras dos seus sub-afluentes, alguns fora do território brasileiro, no Peru e Bolívia, aparentando sua rejeição às represas sobre as águas que pareciam um espelho. Remansos se rebelaram com fortes correntezas. Por quê a cidade de Rio Branco (AC), neste inverno de 2012, ficou debaixo d'água?Esse mesmo Iphan que tombou a EFMM em 2005, políticos e governantes da minha terra deveriam preservar e protegê-la, como determina a Constituição do Estado de Rondônia, entretanto, permaneceram estáticos e omissos, deixando que fossem construídas as hidrelétricas sem os cuidados devidos. São instituições dignas, mas infelizmente seus dirigentes pecaram pela omissão, descumpriram o seu papel, ajudaram a conspirar. Isso não deveria ter acontecido num dos momentos mais tristes de existência deste Estado: a destruição da Madeira Mamoré sem qualquer reação nos gabinetes de Brasília e de Porto Velho. Valeu o "tudo permitido", para que nada fosse impedido.
Senhora Presidente, esse é realmente um momento muito estranho para Amazônia Brasileira.Agora, e não como na época da ditadura militar, a destruição da ferrovia foi mais sofisticada, feroz, e é definitiva. Não mais comandada pelos militares do passado, ontem tão criticados, mas por conspiradores contra o patrimônio nacional e que nos impõe obras, as quais até há pouco tempo criticavam, vide Baldina e Tucuruí. Hoje, nos seus derradeiros momentos, vitimada por sucessivos atentados, a EFMM não tem como resistir. Em situações absurdas, escandalosas, estarrecedoras e inaceitáveis, arrancam-lhe os trilhos, e os que sobraram, brevemente serão submersos; explodem cachoeiras, matam toneladas de peixes, derrubam prédios históricos construídos há um século, não deixando escapar os próprios cemitérios dos heróis.
Enquanto acontecia o Carnaval de 2012, Rondônia não percebeu direito a submersão da ponte do rio Jacy-Paraná, que unia às suas margens, uma obra de arte construída com estrutura metálica, pré- fabricada em 1909 pela Chicago Bridge & Ironwork Builders, com vão livre de 92 metros. Era um dos maiores vãos do Brasil. A ponte sempre existiu majestosamente suspensa entre dois pilares. Era um monumento que poderia ser Patrimônio da Humanidade, mas a partir de agora, devido à sua corrosão pela força das águas em sua estrutura metálica, dificilmente resistirá. Submersa nos próximos cem anos, não chegará aos duzentos. Desaparecerá.
Quem diriam, a EFMM foi construída para durar mil anos?Por tudo isso, acontece crime hediondo de lesa pátria e alta traição ao povo brasileiro.Por isso, com indignação, levamos ao Vosso conhecimento o maior de nossos sentimentos de amazônidas, pois confiamos em que a impunidade não pode prevalecer contra nossa gente e, sobretudo, contra diversas nacionalidades aqui presentes na selva inóspita, no início do século passado, para contribuir com a construção da mais isolada ferrovia do planeta, reconhecida internacionalmente.
Já levamos, fartamente documentada, ao Ministério da Cultura, a situação que comprova os crimes mencionados nesta carta- manifesto. Se nos alongamos, Senhora Presidente, saiba nos compreender em nossos sentimentos e em nossa razão, pois não compactuamos um só momento com essa bandalheira ocorrida em Rondônia. Com intervenção direta no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e no Ministério da Cultura, sob pena de serem contraditórios naquilo que todas as letras, os fatos exigem a eles próprios aprovaram, há 30 anos: o sagrado tombamento da ferrovia – e nunca sua submersão, dilapidação e descarado roubo.
Estivéssemos em outro regime – felizmente não –, perguntaríamos se tudo isso não exigiria providências até mesmo do Ministério da Defesa, uma vez que, três décadas atrás, era o Exército Brasileiro o guardião de um patrimônio cercado, mas que ainda nos permitia a esperança de vê-lo recomposto e salvo da rapinagem.
Senhora Presidente do Brasil, é impossível o silêncio. Clamamos por Justiça. Exigimos que as cotas das barragens dessas hidrelétricas sejam reduzidas. Antes que seja tarde demais.Arquiteto Luiz Leite de Oliveira
Presidente da Associação de Amigos da Madeira Mamoré
Ex-presidente do IAB-ROAMMA – av.Pinheiro Machado, 768 Centro – CEP 76.801-142 PORTO VELHO, Rondônia - Brasil
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