sábado, 25 de julho de 2015

GUAJARÁ-MIRIM: PATRIMÔNIO CULTURAL AMEAÇADO



Guajará-Mirim, também conhecida sob o pseudônimo de Pérola do Mamoré,          possui rico conjunto patrimonial cultural material e imaterial, porém, este relevante legado, lamentavelmente, subsiste em situação de constante abandono, descaso e real ameaça de descaracterização estilística, ou mesmo – o que é pior - de desaparecimento total.  O desamparo com este acervo, que certamente é o derradeiro e o mais importante patrimônio histórico-cultural do Estado de Rondônia, é fato lastimável, pois trata-se de patrimônio detentor de traços cultuais identitários e portador da história e memória local, assim como, reminiscências incontestes dos primórdios da ocupação urbana desta região do Rio Mamoré, em moldes urbanos europeus e estadunidenses.

Arautos dos modismos estéticos e defensores dos “penduricalhos” decorativos fugazes (geralmente acrescentados em fachadas de épocas), compromissados tão somente com discurso plástico dos colonizadores culturais, são, na maioria das vezes, despóticos e inconvenientes intrusos, responsáveis pela descaracterização da memória plástica da cidade e pela destruição da história local.

Somam-se aos colonizadores culturais impiedosos e intolerantes ao risco original e harmônico do patrimonial cultural local, analfabetos estéticos autóctones, adeptos e reverberadores do modismo passageiro e da ‘pedagogia do auto-ódio’, assim como, fies seguidores da estética do colonizador estranho. Juntos, constituem verdadeiras ameaças à memória e história local, avançando sempre destrutivamente, sem dó e nem piedade, sobre nossos traços estéticos próprios e modos tipicamente definidores da identidade cultural local.

Não obstante, este valioso conjunto histórico-cultural da cidade Pérola do Mamoré, não só se ressente do funesto e imperioso abandono ad aeternum, como também é obrigado amargar a triste sina de vítima contumaz da inexistência total, tanto na esfera municipal quanto estadual, de políticas públicas amparadoras, restauradoras, preservadoras e perpetuadoras do patrimônio cultural e da história guajaramirense.

Conforme relato do historiador Victor Hugo, em seu livro Os Desbravadores, "Até o início do século XIX, (...) (a cidade) era apenas uma indicação geográfica para designar o ponto brasileiro à povoação boliviana de Guayaramerín”. Naquela época, a localidade - que hoje é Guajará-Mirim - era conhecida como Porto Esperidião Marques, um pequeno povoado localizado às margens do Rio Mamoré, fazendo fronteira com a cidade coirmã de Guayaramerín, na Bolívia.

O município de Guajará-Mirim foi criado em 12 de julho de 1928, por força da Lei nº 991, sendo sua instalação política realizada na manhã do dia 10 de abril de 1.929, em solenidade oficial, ocasião em que assumiu o cargo de intendente o comerciante Manoel Boucinhas de Menezes, assim como, os primeiros vereadores, todos nomeados pelo governo do Estado do Mato Grosso.

Boi-Bumbá Malhadinho, 2012
Guajará-Mirim caminha para seu primeiro centenário de fundação, e é a segunda cidade mais antiga do Estado de Rondônia. Em 2015, a urbe mamorense completou 86 anos de emancipação política e administrativa, de forma que, em mais de oito décadas de existência, Guajará-Mirim amealhou e consolidou vasto e rico acervo cultural tangível e intangível, o que faz do município importante polo de interesse turístico no campo do patrimônio cultural material e imaterial. As potencialidades turísticas do município se multiplicam para níveis admiráveis, ao considerarmos as infinitas possibilidades do turismo ecológico, religioso e de negócios.

Boi-Bumbá Flor do Campo, 2010
Contudo, possuir relevante herança histórica sem a devida sensibilidade, atenção e atitudes garantidoras da preservação e continuidade dos bens culturais – não só para conhecimento e deleite de gerações vindouras, mas também para o fomento e desenvolvimento econômico local -, coloca Guajará-Mirim, e sua gente, em sombria galeria das cidades sem memória, emoldurando em trágica cena, um povo que não zelou pela sua própria história.

As ruas que definem e cortam o centro histórico da cidade de Guajará-Mirim se constituem em um vivo e rico ‘museu’ para gozo e fruição de historiadores, professores, pesquisadores, turista, caboclos e beradeiros, pois trata-se de um espaço ostentador de variados exemplares arquitetônicos erguidos ainda nos primórdios da ocupação urbanística daquela região da cidade perolense, nos quais, especialmente em suas fachadas, visibiliza-se detalhes estéticos e adereços arquitetônicos adornadores que sinalizam, ou mesmo definem, estilos estéticos históricos d’outrora.

Algumas destas edificações arquitetônicas são tão marcantes na cena cotidiana da cidade, que não é possível tais edifícios passarem despercebidas, nem mesmo aos olhos de analfabetos estéticos, que se rendem deslumbrados, diante de tanta beleza plástica e interesse histórico. Dentre tantos exemplares arquitetônicos presentes, destacam-se as edificações a seguir: Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (inaugurada em 24 de dezembro de 1924); Catedral Nossa Senhora do Seringueiro (iniciada em 1956 e inaugurada em 8 de dezembro de 1971); Mosteiro das Irmãs Calvarianas (antigo Colégio Nossa Senhora do Calvário); o prédio da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Simon Bolívar (fundada em 1950); a edificação da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Durvalina Estilbem de Oliveira (erguida na década de 40, outrora Guajará Hotel);  o antigo sobrado localizado na Av. Dr. Mendonça Lima, centro, antigamente sede da Prefeitura Municipal de Guajará-Mirim; as ruínas da sede do Clube Helênico-Libanês (fundado em fins dos anos 50), a sede da Prelazia de Guajará-Mirim; o prédio sede da Associação Comercial do município (que durante muito tempo foi uma das edificações mais altos da cidade, cujo projeto é de autoria do arquiteto Harry Guimarães Covas, segundo informa o escritor Paulo Cordeiro Saldanha, em artigo publicado em 09/09/2010); o Clube Boinas Rajadas, do exército (antigo Cassino Militar); as praças Dr. Mário Correia (destacando-se na mesma, o seu romântico coreto); e a Barão do Rio Branco (sobressaindo-se ao centro desta, seu imponente obelisco); além de algumas dezenas de edificações particulares de relevante interesse plástico-arquitetônico.

Todas as edificações listadas acima – e também as não listadas –, ao romper das décadas passaram (e tudo indica que continuarão a sofre deste mal), por um cruel processo de desgaste, de deterioração, de descaracterização ou até mesmo de desmoronamento, em razão da ausência da política pública continuada, tanto por parte do estado quanto do município, para preservação, manutenção, perpetuação, divulgação e fruição deste importante e peculiar acerto cultural. Trata-se, pois, de um patrimônio identitário e histórico que insistentemente resisti, bravamente, ao implacável desgaste natural do tempo, à ação covarde do inescrupuloso analfabeto estético e ao desmando e desleixo da autoridade de plantão – salvo raras exceções -, descompromissada com a memória dos pioneiros, com a história local e a cultura da nossa gente.

Este conjunto urbanístico de requintado valor estético, também revestido de grande importância sentimental e histórica, chegou aos dias atuais e, em sua totalidade, com indesejáveis e desarmônicas intervenções arquitetônicas, comprometendo o consenso estilístico da peça histórica. Negligenciado por ‘decoradores aventureiros’, este acervo ainda é o único e irrefutável testemunho do produto cultural e da existência do povo perolense. Páginas amareladas e rasuradas da nossa história.

Cita-se como exemplos de peças arquitetônicas de uso público adulteradas ao sabor da autoridade de plantão no Palácio Pérola do Mamoré, por vezes corrompidas para benefício (vergonhoso) de amigos, as históricas praças Dr. Mário Correia e Rio Branco, descaracterizadas com acréscimo de edificações ‘alienígenas' aos riscos originais, erguidas no interior das praças, para implantação de bares, restaurantes e lanchonetes, sem qualquer planejamento harmônico e em flagrante confronto estético. Tanto o coreto quanto o busto de Marechal Rondon instalados na Praça Mário Correia, assim como o belíssimo obelisco da Praça Barão do Rio Branco, elementos que dão significação e relevância aos espaços públicos ora em tela, passam ao modesto posicionamento de segundo plano, diante de intervenções poluidoras e descaracterizantes daqueles conjuntos arquitetônicos.

Nave da Igreja N. S. do P. Socorro
O acervo de edificações religiosas, detentoras de claros riscos estéticos e fortes carga históricas significativas, também tem se submetido ao processo de perda das características distintivas. Intervenções arquitetônicas alheias ao estilo predominante deste acervo patrimonial, também tem avançado sobre nossos principais exemplares de arquitetura religiosa, ainda que em processo mais lento. A Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, uma peça arquitetônica claramente definida com traçado neogótico (visível exemplar de arquitetura eclética: técnica de construção moderna e plástica inspirada em estéticas históricas: contraforte nas laterais da torre; pequena rosácea na fachada da torre; nervuras no teto de entrada da mesma; janelas e portas em arco ogival são elementos arquitetônicos e estéticos próprios da arquitetura gótica medieval), é a primeira igreja erguida no município, que durante longos anos foi a catedral da Prelazia de Guajará-mirim, sendo sua construção iniciada em 1923, por Dom Rey. A igreja é de nave única, hoje com um só altar (altar-mor), peça que também já passou por ‘remodelação’, sendo que, no passado, já teve mais dois alteres: os colaterais. O piso original da nave da igreja foi substituído por cerâmica moderna, de plástica desarmônica ao conjunto total da obra. O mesmo material foi aplicado nas paredes da igreja, em altura de aproximadamente um metro, destoando das paredes predominantemente brancas. Recentemente, a mureta da igreja passou por reforma, e as antigas grades, peças construídas em madeiras, que acompanhavam o conjunto do muro e que lá existiram por longas décadas, foram substituídas por grades confeccionadas em ferro.


Prelazia de Guajará-Mirim
A última agressão descaracterizadora conduzida pela Prelazia de Guajará-Mirim, em bem histórico, aconteceu na sede da própria Prelazia. As paredes externas e internas da edificação foram revestidas, em parte, por cerâmica de visual estranho e desarmônico ao todo do edifício, interferindo e descaracterizando plasticamente o estilo da peça arquitetônica: arquitetura eclética, com fortes inspirações neoclassicista. Um crime em desfavor ao estilo daquela edificação histórica e um claro flagrante de desmazelo à memória local. É de se lamentar que, em Guajará-Mirim, tais atitudes partam exatamente de uma instituição que ao longo da história da humanidade e da história das artes - a Igreja Católica - foi a guardiã zelosa de grande parte do acervo artístico produzindo através dos tempos, por todas as civilizações, ainda existente nos dias atuais.

Tais agressões são mais ferozes e em maior quantidade nas inúmeras fachadas do conjunto urbanístico do centro histórico de Guajará-Mirim. A esdrúxula e delituosa iniciativa de modernizar as fachadas antigas daquelas edificações erguidas na região central da cidade, local de forte interesse histórico, tem comprometido, em grande parte, ou mesmo colocado a baixo, vários exemplares de arquitetura de época, eclética, com ricos elementos plásticos importantes, claramente inspirados no barroco e no neoclassicismo. É um patrimônio cultural da cidade que corre sério risco de desaparecimento total.
Diante deste quadro desolador para com o patrimônio cultural local, urge medidas públicas, assim como a adoção de hábitos por parte de todos, que possibilitem a restauração, a preservação e a perpetuação desse rico patrimônio, para afirmação de nossa história, memória e identidade cultural.

Catedral N. S. do Seringueiro, Guajará-Mirim
Para tanto, se faz necessário a institucionalização de um amplo e completo programa de políticas públicas para educação patrimonial, voltado para população local, para autoridade pública, para o turista e para o empresário, dotado de mecanismos que tenham a capacidade de suscitar na população e nos visitantes, o sentimento do respeito e a atitude da preservação e da perpetuação deste imensurável patrimônio cultural, para o bem-estar de todos e para o desenvolvimento econômico local e regional.

Considerar um projeto renovador para o desenvolvimento da economia do município (há décadas patinando e definhando), a partir da indústria do turismo, considerando as imensuráveis potencialidades de Guajará-Mirim no campo da cultura popular, do patrimônio histórico, das tradições religiosas, dos hábitos e costumes locais, do comércio com país vizinho e da imensa área de preservação ambiental é um debate público que se faz absolutamente necessário, urgente, indispensável e, muito provavelmente, a única saída para o desenvolvimento da economia do município, fitando a geração de novos postos de trabalho, o fortalecimento do comércio e serviços do município, e a geração de ocupação e renda para todos.

Para finalizar, saliento que este artigo tem, tão somente, o firme e único propósito de trazer para arena dialógica, questões cruciais da cidade, relevantes para vida do cidadão, fitando a produção de uma ampla discussão democrática e republicana, sobre a cidade, sua gente e sua cultura e, em hipótese alguma, objetiva agredir pessoas ou instituições. Para reflexão de todos, deixo aqui um trecho do Artigo “Guajará-Mirim, Berço Rondoniense da Cultura e Tradição”, publicado no Jornal Gente de Opinião, em 16/07/2014, assinado pela historiadora e professora Yêdda Pinheiro Borzacov: “Cidade que espelha a diversidade de sons e interpretações folclóricas, como atestam os bois-bumbás, a festa da solidariedade do Divino Espírito Santo, a romaria fluvial de São Pedro, no Mamoré; o auto de resistência da raça negra – o batuque; a diablada (dança boliviana introduzida na cidade); o pitoresco das rezas da pajelança; as parodias do “Sarará”; as histórias dos pescadores e seringueiros; os mitos e as lendas do boto, caapora, matinta-perera, curupira, mãe d’água, boiúna, mapinguari, tamba-tajá...”.



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