Guajará-Mirim,
também conhecida sob o pseudônimo de Pérola do Mamoré, possui rico conjunto patrimonial cultural material e
imaterial, porém, este relevante legado, lamentavelmente, subsiste em situação
de constante abandono, descaso e real ameaça de descaracterização estilística,
ou mesmo – o que é pior - de desaparecimento total. O desamparo com este acervo, que certamente é
o derradeiro e o mais importante patrimônio histórico-cultural do Estado de
Rondônia, é fato lastimável, pois trata-se de patrimônio detentor de traços cultuais identitários e portador da história e
memória local, assim como, reminiscências incontestes dos primórdios
da ocupação urbana desta região do Rio Mamoré, em moldes urbanos europeus e
estadunidenses.
Arautos
dos modismos estéticos e defensores dos “penduricalhos” decorativos fugazes
(geralmente acrescentados em fachadas de épocas), compromissados tão somente com discurso
plástico dos colonizadores culturais, são, na maioria das vezes, despóticos e inconvenientes
intrusos, responsáveis pela descaracterização da memória plástica da cidade e pela
destruição da história local.
Somam-se
aos colonizadores culturais impiedosos e intolerantes ao risco original e
harmônico do patrimonial cultural local, analfabetos estéticos autóctones, adeptos
e reverberadores do modismo passageiro e da ‘pedagogia do auto-ódio’, assim como,
fies seguidores da estética do colonizador estranho. Juntos, constituem
verdadeiras ameaças à memória e história local, avançando sempre destrutivamente,
sem dó e nem piedade, sobre nossos traços estéticos próprios e modos tipicamente
definidores da identidade cultural local.
Não obstante,
este valioso conjunto histórico-cultural da cidade Pérola do Mamoré, não só se ressente
do funesto e imperioso abandono ad aeternum,
como também é obrigado amargar a triste sina de vítima contumaz da inexistência
total, tanto na esfera municipal quanto estadual, de políticas públicas
amparadoras, restauradoras, preservadoras e perpetuadoras do patrimônio cultural
e da história guajaramirense.
Conforme
relato do historiador Victor Hugo, em seu livro Os Desbravadores, "Até o
início do século XIX, (...) (a cidade) era apenas uma indicação geográfica para
designar o ponto brasileiro à povoação boliviana de Guayaramerín”. Naquela
época, a localidade - que hoje é Guajará-Mirim - era conhecida como Porto
Esperidião Marques, um pequeno povoado localizado às margens do Rio Mamoré,
fazendo fronteira com a cidade coirmã de Guayaramerín, na Bolívia.
O
município de Guajará-Mirim foi criado em 12 de julho de 1928, por força da Lei
nº 991, sendo sua instalação política realizada na manhã do dia 10 de abril de
1.929, em solenidade oficial, ocasião em que assumiu o cargo de intendente o
comerciante Manoel Boucinhas de Menezes, assim como, os primeiros vereadores,
todos nomeados pelo governo do Estado do Mato Grosso.
Boi-Bumbá Malhadinho, 2012 |
Guajará-Mirim
caminha para seu primeiro centenário de fundação, e é a segunda cidade mais
antiga do Estado de Rondônia. Em 2015, a urbe mamorense completou 86 anos de
emancipação política e administrativa, de forma que, em mais de oito décadas de
existência, Guajará-Mirim amealhou e consolidou vasto e rico acervo cultural
tangível e intangível, o que faz do município importante polo de interesse
turístico no campo do patrimônio cultural material e imaterial. As
potencialidades turísticas do município se multiplicam para níveis admiráveis,
ao considerarmos as infinitas possibilidades do turismo ecológico, religioso e
de negócios.
Boi-Bumbá Flor do Campo, 2010 |
Contudo,
possuir relevante herança histórica sem a devida sensibilidade, atenção e
atitudes garantidoras da preservação e continuidade dos bens culturais – não só
para conhecimento e deleite de gerações vindouras, mas também para o fomento e
desenvolvimento econômico local -, coloca Guajará-Mirim, e sua gente, em
sombria galeria das cidades sem memória, emoldurando em trágica cena, um povo que
não zelou pela sua própria história.
As
ruas que definem e cortam o centro histórico da cidade de Guajará-Mirim se
constituem em um vivo e rico ‘museu’ para gozo e fruição de historiadores,
professores, pesquisadores, turista, caboclos e beradeiros, pois trata-se de um
espaço ostentador de variados exemplares arquitetônicos erguidos ainda nos
primórdios da ocupação urbanística daquela região da cidade perolense, nos quais,
especialmente em suas fachadas, visibiliza-se detalhes estéticos e adereços
arquitetônicos adornadores que sinalizam, ou mesmo definem, estilos
estéticos históricos d’outrora.
Algumas
destas edificações arquitetônicas são tão marcantes na cena cotidiana da cidade,
que não é possível tais edifícios passarem despercebidas, nem mesmo aos olhos
de analfabetos estéticos, que se rendem deslumbrados, diante de tanta beleza
plástica e interesse histórico. Dentre tantos exemplares arquitetônicos presentes,
destacam-se as edificações a seguir: Capela de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro (inaugurada em 24 de dezembro de 1924); Catedral Nossa Senhora do
Seringueiro (iniciada em 1956 e inaugurada em 8 de dezembro de 1971); Mosteiro
das Irmãs Calvarianas (antigo Colégio Nossa Senhora do Calvário); o prédio da Escola
Municipal de Ensino Fundamental e Médio Simon Bolívar (fundada em 1950); a
edificação da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Durvalina Estilbem
de Oliveira (erguida na década de 40, outrora Guajará Hotel); o antigo sobrado localizado na Av. Dr.
Mendonça Lima, centro, antigamente sede da Prefeitura Municipal de
Guajará-Mirim; as ruínas da sede do Clube Helênico-Libanês (fundado em fins dos
anos 50), a sede da Prelazia de Guajará-Mirim; o prédio sede da Associação
Comercial do município (que durante muito tempo foi uma das edificações mais
altos da cidade, cujo projeto é de autoria do arquiteto Harry Guimarães Covas,
segundo informa o escritor Paulo Cordeiro Saldanha, em artigo publicado em
09/09/2010); o Clube Boinas Rajadas, do exército (antigo Cassino Militar); as
praças Dr. Mário Correia (destacando-se na mesma, o seu romântico coreto); e a
Barão do Rio Branco (sobressaindo-se ao centro desta, seu imponente obelisco);
além de algumas dezenas de edificações particulares de relevante interesse
plástico-arquitetônico.
Todas
as edificações listadas acima – e também as não listadas –, ao romper das
décadas passaram (e tudo indica que continuarão a sofre deste mal), por um
cruel processo de desgaste, de deterioração, de descaracterização ou até mesmo de
desmoronamento, em razão da ausência da política pública continuada, tanto por
parte do estado quanto do município, para preservação, manutenção, perpetuação,
divulgação e fruição deste importante e peculiar acerto cultural. Trata-se,
pois, de um patrimônio identitário e histórico que insistentemente resisti,
bravamente, ao implacável desgaste natural do tempo, à ação covarde do
inescrupuloso analfabeto estético e ao desmando e desleixo da autoridade de
plantão – salvo raras exceções -, descompromissada com a memória dos pioneiros,
com a história local e a cultura da nossa gente.
Este
conjunto urbanístico de requintado valor estético, também revestido de grande importância
sentimental e histórica, chegou aos dias atuais e, em sua totalidade, com
indesejáveis e desarmônicas intervenções arquitetônicas, comprometendo o
consenso estilístico da peça histórica. Negligenciado por ‘decoradores
aventureiros’, este acervo ainda é o único e irrefutável testemunho do produto
cultural e da existência do povo perolense. Páginas amareladas e rasuradas da
nossa história.
Cita-se
como exemplos de peças arquitetônicas de uso público adulteradas ao sabor da
autoridade de plantão no Palácio Pérola do Mamoré, por vezes corrompidas para
benefício (vergonhoso) de amigos, as históricas praças Dr. Mário Correia
e Rio Branco, descaracterizadas com acréscimo de edificações ‘alienígenas' aos
riscos originais, erguidas no interior das praças, para implantação de bares,
restaurantes e lanchonetes, sem qualquer planejamento harmônico e em flagrante
confronto estético. Tanto o coreto quanto o busto de Marechal Rondon instalados
na Praça Mário Correia, assim como o belíssimo obelisco da Praça Barão do Rio
Branco, elementos que dão significação e relevância aos espaços públicos ora em
tela, passam ao modesto posicionamento de segundo plano, diante de intervenções
poluidoras e descaracterizantes daqueles conjuntos arquitetônicos.
Nave da Igreja N. S. do P. Socorro |
Prelazia de Guajará-Mirim |
Tais
agressões são mais ferozes e em maior quantidade nas inúmeras fachadas do
conjunto urbanístico do centro histórico de Guajará-Mirim. A esdrúxula e
delituosa iniciativa de modernizar as fachadas antigas daquelas edificações erguidas
na região central da cidade, local de forte interesse histórico, tem
comprometido, em grande parte, ou mesmo colocado a baixo, vários exemplares de
arquitetura de época, eclética, com ricos elementos plásticos importantes,
claramente inspirados no barroco e no neoclassicismo. É um patrimônio cultural
da cidade que corre sério risco de desaparecimento total.
Diante
deste quadro desolador para com o patrimônio cultural local, urge medidas
públicas, assim como a adoção de hábitos por parte de todos, que possibilitem
a restauração, a preservação e a perpetuação desse rico patrimônio, para
afirmação de nossa história, memória e identidade cultural.
Catedral N. S. do Seringueiro, Guajará-Mirim |
Considerar
um projeto renovador para o desenvolvimento da economia do município (há
décadas patinando e definhando), a partir da indústria do turismo, considerando
as imensuráveis potencialidades de Guajará-Mirim no campo da cultura popular,
do patrimônio histórico, das tradições religiosas, dos hábitos e costumes
locais, do comércio com país vizinho e da imensa área de preservação ambiental é
um debate público que se faz absolutamente necessário, urgente, indispensável
e, muito provavelmente, a única saída para o desenvolvimento da economia do
município, fitando a geração de novos postos de trabalho, o fortalecimento do
comércio e serviços do município, e a geração de ocupação e renda para todos.
Para
finalizar, saliento que este artigo tem, tão somente, o firme e único propósito
de trazer para arena dialógica, questões cruciais da cidade, relevantes para
vida do cidadão, fitando a produção de uma ampla discussão democrática e
republicana, sobre a cidade, sua gente e sua cultura e, em hipótese alguma,
objetiva agredir pessoas ou instituições. Para reflexão de todos, deixo aqui um
trecho do Artigo “Guajará-Mirim, Berço Rondoniense da Cultura e Tradição”, publicado
no Jornal Gente de Opinião, em 16/07/2014, assinado pela historiadora e
professora Yêdda Pinheiro Borzacov: “Cidade que espelha a diversidade de sons e
interpretações folclóricas, como atestam os bois-bumbás, a festa da
solidariedade do Divino Espírito Santo, a romaria fluvial de São Pedro, no
Mamoré; o auto de resistência da raça negra – o batuque; a diablada (dança
boliviana introduzida na cidade); o pitoresco das rezas da pajelança; as
parodias do “Sarará”; as histórias dos pescadores e seringueiros; os mitos e as
lendas do boto, caapora, matinta-perera, curupira, mãe d’água, boiúna,
mapinguari, tamba-tajá...”.
Por que apagaram o brilho da Pérola do Mamoré?
ResponderExcluir