quinta-feira, 14 de novembro de 2019

UM CRIME CONTRA A MEMÓRIA DE GUAJARÁ-MIRIM: A PROPÓSITO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E DAS INTERVENÇÕES TRESLOUCADAS


Praça Mário Corrêa - coreto ao centro
Trazer para o debate público o centro histórico da cidade - a própria cidade ou o conjunto urbanístico histórico que compõe a memória coletiva e individual da urbe - é uma iniciativa democrática, transparente e responsável de lidar e perpetuar a história de um povo, a história da cidade, a história da região e a história do país. Preservar a memória do patrimônio cultural material e intangível é salvaguardar para gerações futuras, as experiências acumuladas por uma sociedade ao longo dos tempos, pois é também na memória do patrimônio cultura das sociedades que está cunhada a visão de mundo, de cultura, de economia, de religião, de desenvolvimento e tudo aquilo que nos cerca, envolve e move.

Praça Mário Corrêa - ao centro histórico coreto
Para melhor compreender sobre o que vamos abordar a seguir – considerando que nossa proposta é trazer para discussão pública as edificações históricas de Guajará-Mirim e a maneira irresponsável como autoridades e lideranças civis lidam com patrimônio cultural  da cidade -, é importante entender que se define como patrimônio histórico um bem material, natural ou imóvel que possui significado e importância artística, cultural, religiosa, documental ou estética para uma sociedade, construído ou produzido pelas gerações passadas, e que representa importante fonte de pesquisa e preservação cultural.

Coreto da Praça Mário Corrêa em sua forma original, telhado em telha
francesa marselha (foto 2018)
Neste sentido, a Organização das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e Educação (UNESCO) é o órgão responsável pela definição de regras para proteção do patrimônio histórico e cultural da humanidade. No Brasil, cabe ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a gestão, a proteção e a preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro.

No âmbito das unidades federativas, existem as secretarias e órgãos estaduais e municipais, compostos por quadro pessoal qualificado, responsável pelo desenvolvimento da política pública de preservação, manutenção, fruição e acesso aos bens que carregam a memória e a cultura de um povo (ou assim deveria ser, no mínimo).

Coreto da Praça Mário Corrêa: nota-se telhado e forro em madeira
Guajará-Mirim é o segundo município mais antigo do Estado de Rondônia. Conforme nos informa o historiador Victor Hugo, em seu livro Os Desbravadores, "Até o início do século XIX, (...) (a cidade) era apenas uma indicação geográfica para designar o ponto brasileiro à povoação boliviana de Guayaramerín”. Naquela época, a localidade que hoje é Guajará-Mirim ainda era conhecida apenas como Porto Esperidião Marques, povoado localizado às margens do Rio Mamoré, fazendo fronteira com a sua coirmã cidade de Guayaramerín, Beni, Bolívia.

Forro original, em madeira do Coreto da
Praça Mário Correia (telhado e forro
destruídos em 2019)
Das primeiras décadas de ocupação e desenvolvimento da região de Guajará-Mirim aos dias atuais, em moldes urbanísticos ocidental, a cidade amealhou significativos exemplares arquitetônicos que atestam a história e a história daqueles que aqui chegaram para povoar a região composta pelos Vales do Mamoré e Guaporé. São edificações que compõem o conjunto urbanístico histórico da cidade, de singulares fachadas concebidas por linhas estéticas de outrora, por amplas praças equipadas com coreto e obelisco comemorativo. Um conjunto arquitetônico encerrados por traços de valor estético, por técnica construtiva de décadas passadas, de imensurável valia histórica.

Sem sombras de dúvidas que é em Guajará-Mirim que ainda reside e resiste aquele que pode ser o último, o mais original e ainda completo conjunto arquitetônico erguidos por gerações passadas. Também é inegável que referido patrimônio subsiste à deriva, abandonado, carecido da atitude pública e do gesto responsável da sociedade como um todo, para proteção do bem cultural local e, desta feita, continuar resistindo e existindo enquanto relatos testemunhas da história e da memória da cidade.

Coreto da Praça Mário Corrêa, em sua forma original,
Guajará-Mirim, RO.
O Coreto da Praça Mário Corrêa é a mais recente vítima da negligência e da intervenção irresponsável, perpetrada por analfabetos estéticos que se apresentam sob falsas credenciais de defensores e protetores da história, do patrimônio e da memória coletiva da cidade. O elegante, gracioso e romântico Coreto da Praça Mário Corrêa foi vítima indefesa dos arroubos arrogantes daqueles que se dizem amar e defender o patrimônio cultural e artístico de Guajará-Mirim. O patrimônio histórico da cidade é vítima contumaz daqueles que se dizem “filhos e amigos de Guajará-Mirim”.

Indiferentes ao estilo arquitetônico e à técnica de construção, sem compromisso algum com a história, a memória e o patrimônio cultural de caboclos, mestiços, indígenas, beradeiros, nordestinos e pioneiros que aqui chegaram para erguer a lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, “capitães do mato” autoproclamados benfeitores e protetores de nossa arquitetura histórica avançaram impiedosamente sobre inconteste símbolo da cidade de Guajará-Mirim e, em ato tresloucado demoliram o telhado do Coreto da Praça Mário Corrêa, alegando ser tal atitude – covarde crime contra o patrimônio cultural da cidade - uma ação de restauro da edificação histórica. 

Coreto da Praça Mário Correia, 2019, já com telhado e
forro originais demolidos.
Sem nenhum constrangimento e com toda desfaçatez que cabe aos descarados, autoridades e representantes da sociedade civil - iletradas insensíveis ao estilo e à linguagem arquitetônica histórica -, pretendem devolver à população local, aos visitantes e turistas que por ventura visitem a cidade no período da festa dos ‘filhos e amigos de Guajará-Mirim”, em festiva, solene e cínica cerimônia, o prédio histórico por eles fraudado, agora um verdadeiro embuste. Uma enganação para tolos aplaudirem.

Forro do teto da Praça Mário Corrêa: confeccionado em PVC: uma agressão
à memória arquitetônica da cidade.
Para encerrar este artigo (e não a discussão sobre gestão do patrimônio histórico local), deixo aqui o Artigo 9° da Carta de Veneza, marco internacional para conservar e restaurar bens culturais, elaborada pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), quando da realização do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, em 1964, que define RESTAURO:

 
Coreto da Praça Mário Corrêa: uma reforma demoliu
o telhado e o forro em madeira, originais, sendo o
substituído por telha geométrica retangular de 
sobre posição, completamente distinta da 
original (marselha), e o forro em PVC 
Art.9 - O restauro é um tipo de operação altamente especializado. O seu objetivo é a preservação dos valores estéticos e históricos do monumento, devendo ser baseado no respeito pelos materiais originais e pela documentação autêntica. (...). O restauro deve ser sempre precedido e acompanhado por um estudo arqueológico e histórico do monumento.

A preservação e a manutenção do Coreto da Praça Mário Corrêa enquanto patrimônio histórico da sociedade local é de interesse de todos, em razão de sua vinculação aos fatos memoráveis que contam a histórica da cidade de Guajará-Mirim, além do seu imensurável valor social, artístico e cultural. Ademais, preservar este patrimônio permite-nos montar, estudar e compreender a história de nossos antepassados, uma vez que o patrimônio histórico está repleto de informações sobre tradições e saberes da cultura de um povo.

Mas, lamentavelmente, não foi assim que se deu a intervenção nesta edificação histórica, símbolo da cidade de Guajará-Mirim. Quem pensou, planejou e executou a REMORMA (e não RESTAURO) no icônico coreto, fez à revelia da lei.

Um crime aconteceu aqui. Cabe aos órgãos oficiais pertinentes, investigação e punição aos culpados. Cabe à população, verdadeiramente preocupada com nossa história, exigir esclarecimentos das autoridades, sobre aloprada e nefasta atitude contra nossa memória.

2 comentários:

  1. Parabéns, Ariel, pela defesa clara e intransigente do patrimônio cultural, artístico e memorial dos povos de sua terra. Uma aula magnifica sobre estilo arquitetônico e técnica de construção. Sobretudo, sobre a história, a memória e o patrimônio cultural local, construidos por "caboclos, mestiços, indígenas, beradeiros, nordestinos e pioneiros" - que, ao erguerem, a lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, deram importante contribuição para a formação dos povos que os sucederam. São legados patrimoniais que somente a sensibilidade, o conhecimento e a compreensão de pertencimento de seus posteriores, os levariam a respeitar e preservar a história - que, por direito, pertence a todas as gerações.

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  2. É muito triste ver essa última foto do coreto. Parabéns pela página Ariel, é linda. Precisamos denunciar esses crimes contra o patrimônio cultural.

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